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Múltiplas personalidades eternas

O ano eu não lembro, mas certamente foi numa primavera ou outono qualquer entre minhas idas e vindas pelo Rio de Janeiro. Provavelmente entre 1940 ou 1950. Não lembro se já falei por aqui antes, mas odeio essas épocas do ano. Pois o clima tropical do Brasil não nos permite primaveras quentes nem outonos gelados. Fica sempre aquela bosta de clima com várias estações ao longo do dia.

Meu temperamento nesta época era muito variável. Em certos momentos eu era pura alegria, noutros eu queria destruir a cidade ou até mesmo sair suicidamente à luz do dia. Tanto que por vezes Eleonor promovia festinhas caseiras, onde a verdadeira intensão era me manter por perto.

Foi numa destas festas que conheci uma garota. Loirinha e burguesinha. A típica cocota da época, filha de comendador e toda fresca. Ela havia sido por uma convidada de Eleonor e no mais clichê dos enredos. Bebeu e acabou nua entre meus lençóis.

A questão é que naquela noite eu me deparei com algo diferente, eu não queria apenas sexo, eu queria provar sua dor. Talvez meu demônio estivesse aflorado, ou o clima tenha me enchido o saco. E estava a ponto de querer profanar todo aquele belo corpo rosa.

Antes de tudo eu me alimentei. Suguei todo o sague que ela pudesse me oferecer sem perder sua vida. E todo aquele doce e vivo manjar não me foi suficiente. Foi quando a soltei sobre a cama. Me estiquei ao seu lado e por alguns minutos me vi entre os pensamentos mais macabros. Lembrei de quando fui transformado, das pessoas fantasiadas naquela noite de carnaval e de como o tempo havia passado desde o tempo em que eu corria pela fazenda de meus pais, ao lado dos cavalos e de meu irmão.

E não fiquei preso apenas aos bons momentos. Minha mente foi literalmente dilacerada pelos momentos ruins e estes me deixaram em choque. Peguei-me atônico e fiquei em posição fetal por longos minutos. Acho até que tremia como se fosse permitido a um vampiro o fulgor de uma febre humana.

Dormi, desmaiei no mais profundo sono dos mortos. Devo ter ficado naquele estado por muito tempo e o que importa sobre tal situação é o que aconteceu assim que fui acordado. Eleonor me acordou aos gritos. Ela estava diabolicamente brava, preocupada e indignada.

Acordei indignado com seu desespero. Mal percebi a poça de sangue ao meu lado na cama, tão pouco o corpo da garota ao chão. Tudo indicava que eu havia tido um surto, talvez psicótico. Talvez minha forma bestial surgiu e dizimou a pobre garota…

Fato é que Eleonor me fez limpar tudo e surgia ali o fim de nosso relacionamento. Passei diversas noites longe de todos. Sai do RJ por umas semanas. Visitei a fazenda, onde Georg dorme e também estive em São Paulo. Lugar onde conheci meu estimado amigo, o Doutor.

Encontrei o Doutor num encontro de vampiros. Algo promovido pelo vampiro líder da cidade, que insistiu em me apresentar para os demais. Confesso, que não tinha o menor interesse em tal evento. Tão pouco estava com ânimo para conversas ou cerimônias.

Encontrei-me com eles onde hoje se localiza o Conjunto Nacional na famosa avenida paulista. Parei com um carro de aluguel próximo e fui a pé por duas quadras. O momento era tão desfavorável, que inclusive não percebi um homem bem trajado, com maleta de médico se aproximar.

Trocamos algumas palavras por educação e prestei mais atenção nele, quando adentramos juntos no lugar do evento, onde dei conta que ele também era um vampiro.

Tudo nele me impressionou, seu jeito metódico, sua roupa finamente passada e costurada. O bigode e cabelos cortados com precisão. Sem falar do apelido: Doutor.

Ao final daquela noite ficamos amigos e fui convidado para conhecer seu local de descanso. Fiquei curioso ao saber que ele habitava um hospital psiquiátrico abandonado. Onde dentre outras coisas ele praticava seus experimentos.

Resumindo, passei alguns meses junto dele. Momentos onde fui seu assistente, confrontei meus medos, nos medos dos outros e aprendi boa parte de sua técnica original. Foi ele que ensinou boa parte das teorias caóticas que ainda hoje influenciam meus pensamentos. Sem falar de muitos atos que cometi em prol de suas teorias.

Durante aqueles meses eu deixei meu clã de lado, assumi uma “nova vida” e com outro nome. Nem mesmo Sebastian tinha espaço em meus pensamentos. E foi assim até um dia em que capturamos duas crianças. A ideia seria doutrina-las e tudo estava pronto na cabeça do Doutor.

Travei quando vi ambas despidas em cima de uma mesa. Seus corpos inertes em função do clorofórmio, me deprimiu. A inocência que emanava deles me confrontava e não insistir para que ele parasse. Ele relutou e brigamos.

Consegui imobilizá-lo. Prendi seu velho corpo na mesma mesa em que as crianças estavam. Libertei-as, como se estivesse fazendo aquilo a mim mesmo. Porém antes de ir embora ele me torturou com sua exacerbada frieza:

– Não importa o quanto tu fujas, eu sempre vou fazer parte dos teus pensamentos. Eu vou me soltar e não vou atrás de ti, mas se quiser estarei de braços abertos. Fuja Hector, fuja meu eterno aprendiz!

7 comentários

  1. Todos possuem suas lembranças “amargas” é como uma etapa da existência; acredito que pelo menos uma vez devemos mergulhar no profundo e obscuro para conhecer o que e quem somos, porém há pessoas ou seres que não conseguem voltar e se deixam levar.
    Estou em uma fase complicada da minha efêmera vida, onde resolvi ser alguém melhor e menos inconstante, entretanto pessoas que “ativam” minha parte abominável surgiram de todas as partes e ter o autocontrole é bem complicado.
    Lendo suas histórias, lembranças e contos, tanto faz, me acalma um pouco, seu blog é uma ótima terapia.

    • Olá senhorita, obrigado por considerar meu site uma boa terapia. Apesar do tema principal aqui ser o mundo sobrenatural, eu tento sempre que possível trazer a tona discussões que vão além dos rótulos. Como sempre digo: a verdade sobre o que eu conto está além das entrelinhas e fico feliz quando alguns, tal qual você, percebam isso. ^^

  2. Muito tenso…imagino a tensão dos experimentos e a força com que voltam essas lembrança. Agora quando estou no Conjunto Nacional as vezes me vem esse seu relato, e tento pincelar na mente como era a Paulista naquela época unida a seu relato.

  3. Nosso sub consciente costuma transbordar, trazer fatos assim para a superfície…Ainda mais porque foram reais a ponto de serem marcados no fundo como ferro em brasa…

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