Um calafrio percorreu a espinha do delegado Carlos Eduardo Guimarães quando ele, em pessoa, deixou a delegacia e se deslocou até o local onde, duas horas antes, vizinhos fizeram uma denúncia de mau cheiro. Quando o investigador, de maneira informal, comentou que estava indo até o bairro João Paulo, área nobre da cidade de Florianópolis, atender uma denúncia que, provavelmente resultaria em um cachorro, ou gato morto em uma tubulação de ar condicionado, algo simplesmente ligou o sinal de alerta do experiente delegado. Quase cinco anos atrás, quando Cadu, como os amigos o chamavam, era um investigador da Polícia Civil, a cidade também vivia um período de calmaria, e como agora, nesse início do ano de dois mil e treze, uma denúncia aparentemente boba fez com que a calmaria se transformasse em uma tempestade de sangue, morte e medo. Naquela época Cadu investigou uma série de assassinatos brutais que, simplesmente cessou antes que ele pudesse capturar o assassino. O assassino, sem identidade, alcunha, nome, se transformou em uma lenda urbana em Florianópolis, e como todas as lendas, logo foi substituída por outras.
Quando a porta da luxuosa casa foi arrombada, o cheiro de carne podre fez com que dois ou três jovens policiais recuassem, controlando o asco e a ânsia de vômito. Assim que a porta foi aberta, Cadu teve certeza de que, mais uma vez, ele perderia muitas noites de sono devido aos pesadelos terríveis que lhe açoitariam como a chibata de um carrasco. É, ele precisaria visitar a psicóloga gostosa que o departamento de polícia civil de Florianópolis contratara no mês passado…
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Hirma, Alessandra, Helena… Durante toda sua vida, e sua não-vida, o Doutor estivera a mercê dos encantos que sentia pelas mulheres. Mesmo hoje, uma criatura morta-viva saída de um pesadelo, começava a sentir falta de um novo encanto feminino. Quatro anos se passaram desde que o Doutor deixara Florianópolis, a cidade que cheirava magia – e podridão, segundo ele – para acompanhar Helena em uma viagem pela Europa. Juntos, as duas criaturas deixaram uma longa trilha de corpos por praticamente todos os países da comunidade europeia. Fora a lua de mel de Otto e Helena, mas ao final dos quatro anos, Otto simplesmente olhou para o lado e cansou-se daquela brincadeira, Helena matava sem qualquer requinte, pouco ligava para os ensinamentos que a dor proporciona, enfim, ao final de quatro anos, Otto von Bastian cansou-se daquela cadela vulgar e decidiu voltar a ser quem ele era, O Doutor.
De volta, o vampiro sentia-se deprimido, sozinho, ele jamais fora uma criatura solitária, apesar de suas práticas não-ortodoxas – mesmo para uma criatura da noite – ao longo de seus quase cem anos como vampiro, O Doutor não conseguia lembrar de uma solidão e tédio tão avassaladores quanto aquele que sentia.
Dezembro já passava de sua metade, aproximava-se de uma data que o Doutor simplesmente era apaixonado, o Natal. No Natal as pessoas ficavam mais tranquilas, mais bondosas, como se todos os pecados cometidos ao longo do ano tivessem sua absolvição garantida no infame “espírito natalino”… Era também a época que as pessoas ficavam mais despreocupadas, esquecendo-se que algo terrível sempre os espreita das sombras. Sentado tranquilamente embaixo de um banco da praça quinze de novembro, o Doutor folheava o jornal do dia anterior, a noite já era avançada, e a praça agora era o território de viciados em crack, prostitutas de baixíssimo nível, e mendigos. De alguns, o Doutor sentia genuína pena, de outros genuíno nojo, especialmente por aquelas mulheres sujas que vendiam seu corpo a bêbados, drogados e maníacos sexuais. Observando uma jovem viciada, o Doutor sorriu para si mesmo lembrando do Natal de 1975, quando ele, em visita na cidade de Atlanta, presentear um adolescente vítima de bullying com uma motosserra. O Doutor observara o adolescente por dias, vasculhara a sua mente, até chegar em seus desejos mais sombrios, a partir daí foi fácil, um presente e uma sugestão mental para ele fazer aquilo que sentia vontade. E na noite de Natal, com toda a família reunida, o jovem finalmente libertou-se de sua dor. O Doutor pensou em como estaria Gregory, seu pupilo, que naquela noite de libertação virara capa dos principais jornais dos Estados Unidos, após chacinar toda sua família, fazendo-a em pedaços obscenos de carne retalhada. O Doutor permitira que Gregory passasse cinco anos no corredor da morte, e na noite de sua execução, ao invés da injeção letal, O Doutor deu-lhe seu mais precioso presente: sua maldição.
De fato, o natal o inspirava tanto, que ele decidiu que era chegada a hora de espantar aquela depressão que insistia em se abater sobre ele. Levantou-se, espanou as folhas da figueira que caíram sobre seu chapéu, e com o sorriso característico nos lábios, pôs-se a assobiar sua melodia favorita. A garota viciada, enchendo-se de coragem, aproximou-se da sinistra e quase caricata figura que deixava a praça.
– E aí tio, tem um trocado? – Questionou a moça.
O Doutor parou seu assobio de maneira tão súbita que a menina achou que ele lhe daria um soco, ou algo parecido. Mas, diferente do que imaginara, o homem virou-se para ela ainda sorridente.
– O que você pretende fazer com esse trocado, criança? – Respondeu o Doutor com uma pergunta.
– Ah tio, sabe como é…
– Não, minha querida, não sei, me conte? O que você faria se eu ao invés de lhe dar trocados lhe desse isso? – Questionou o Doutor tirando duas notas de cem reais do bolso e deliciando-se com o olhar desesperado da jovem.
– Nossa, dá pra comprar um monte de pedra com isso aí, tio! – Disse a jovem, quase não conseguindo se conter, sua vontade era agarrar as notas e correr o mais rápido que pudesse. Mas algo no aspecto incomum daquele homem lhe dizia que se fizesse isso ela dificilmente conseguiria dar mais do que dois passos. O homem tinha uma aparência bizarra e fascinante ao mesmo tempo, sua pele era extremamente pálida, não era um homem bonito, mas a inteligência exalava dele como perfume, não era alto, pouco mais de um metro e setenta e cinco, estava um pouco acima do peso, mas longe de ser obeso, mas era, com toda certeza o sorriso que ele tinha nos lábios que deixava a jovem viciada inquieta e fascinada: era um sorriso quase que lupino, o sorriso de alguém cujo raciocínio já estava segundos a frente de qualquer outra pessoa.
– Sim, um monte de pedra! E eu aposto que você faria qualquer coisa para que eu lhe desse esse dinheiro não é mesmo? – Perguntou o Doutor.
– Tu quer trepar? Vamos ali do lado, posso te fazer um boquete… – Disse a jovem, pouco mais que uma criança, ansiosa para ganhar seu prêmio e correr para o primeiro traficante que encontrasse. Ela chegava a um ponto tão degradante de seu vício que pouco se importava em abrir as pernas ou fazer sexo oral em um desconhecido, tudo que importava era que o desconhecido tinha duas garoupas azuis que fariam da noite daquela jovem uma imensa viagem. O Doutor se deliciava quando os viciados chegavam a esse ponto, eram como cães ansiosos por fazer os truques que seus donos mandam, apenas para ganharem suas recompensas. Durante sua carreira como psiquiatra ele conviveu com vários viciados, e todas as vezes o Doutor aprendera um bocado testando os limites daquelas mentes destroçadas por substâncias ilícitas.
– Não minha jovem, não quero trepar, nem um boquete, e uma menininha como você não deveria usar desse linguajar, não fica bem para você! Ao invés de sexo, vamos fazer um jogo, ao final dele, se você cumprir todas as provas eu lhe darei o dinheiro, que tal?
– Pode ser… – Concluiu a jovem, desesperada mas achando tudo aquilo estranho.
– Bem, caminhe comigo. Qual o seu nome, criança? – Disse o Doutor, dando o braço para que a garota o segurasse. Depositou sua mão gélida sobre a mão magra da menina, que sentiu um calafrio percorrer sua espinha.
– Ju… Julia…
– Julia é um nome recatado demais! Não é o nome de uma jovem que estaria na rua a essa hora não é mesmo? Não! Hoje você se chamará… Vejamos… Hirma! – Disse o Doutor, rindo de si mesmo pela idéia genial de chamar uma prostituta viciada pelo nome de sua mãe.
– Hirma??
– Sim, criança, Hirma! É o nome de minha querida mãe, ela era uma mulher difícil, minha saudosa Hirma. E ela era assim, uma coisinha desesperada, como você. Então aí está sua primeira tarefa, Hirma, vê aquele homem no chão? O mendigo? Pegue a garrafa que está do lado dele e estoure-a na cabeça dele! – Disse o Doutor em um tom tão casual que era como se ele pedisse pra jovem lhe comprar um café, ou atravessar a rua…
– Mas… – Abriu a boca a jovem.
– Sem mas, Hirma, você não quer seu trocadinho? Pense em quanta pedra você poderá fumar, sem abrir as pernas hein?
– Tá… eu faço.
A jovem esgueirou-se, silenciosa como um camundongo, e o mendigo que estava bêbado e caído nem percebeu quando Julia apanhou a garrafa vazia de cachaça. A jovem olhou o homem por alguns segundos, por um lampejo de instante ela hesitou, em um dos raros momentos de lucidez, quando ela lembrava-se de sua casa, de sua família, do pai e da madrasta que Julia odiava, mas que, no fundo, fizera o papel de sua mãe. Por um breve instante ela hesitou, ela queria sair daquele monte de merda que sua vida se transformara, tinha dezesseis anos recém-completados, estava há seis meses na rua, e lá no fundo, tudo que Julia queria era aninhar-se no colo do pai e simplesmente chorar. Mas então ela sentiu a presença daquele homem sinistro atrás de si, imediatamente ela lembrou-se do sorriso lupino, e lembrou do dinheiro, e do que o dinheiro lhe proporcionaria. Quando deu por si, a garrafa já estava em cacos, e da cabeça do homem – agora desmaiado – o sangue jorrava em uma torrente vermelho-vivo. O Doutor olhou para o sangue extasiado, sangue de mendigo não era uma refeição digna, ainda que ele nunca entendesse as manias de alguns vampiros, sangue é sangue. Ele abaixou-se chamando a menina para perto de si. Tocou o pescoço do mendigo e disse:
– Ele morrerá, vê esse corte? Você acertou-o em cheio Hirma!
Julia olhou o sangue jorrando, e novamente a lucidez veio a tona, a jovem pôs-se a chorar e soluçar incontrolavelmente repetindo e implorando para que o Doutor ajudasse o homem que agonizava. Com uma tranquilidade perturbadora, o Doutor aninhou a criança nos braços, como um pai amoroso e disse:
– Shhhhh… shhhhh… calma, criança, calma… Tudo ficará bem… vamos ajudar o pobre homem, sim?
O Doutor colocou a menina sentada de maneira gentil, Julia olhou incrédula quando o homem tirou a fina lâmina do bisturi do bolso de seu casaco. Ela estava paralisada, aterrorizada, tudo que conseguiu fazer foi gaguejar algo incompreensível enquanto o Doutor passou a lâmina na garganta do homem, um corte fino e preciso, que abriu de uma jugular a outra fazendo o sangue jorrar farto. Em choque, Julia começou a tremer e soluçar, não demorou muito para que o sangue do homem, que agora tinha seus últimos espasmos, ensopasse Julia. O Doutor levantou-se e observou a cena, os segundos finais de uma vida, somados a flor da juventude, era algo poético e belo, e o Doutor sentiu vontade de imortalizar aquilo em uma tela. Usando seus poderes da mente, o Doutor entrou na cabeça da jovem, e deleitou-se com o que viu. Ela estava a um passo da insanidade, o que ele fizera arrancara o desejo pelo crack, substituindo por algo muito mais intenso que isso: o pavor.
O pavor era a sua droga, como ele ficara tanto tempo longe disso? Ele se perguntou. O barulho das sirenes o tiraram de seus devaneios, mas ele ainda não acabara com Julia, por isso, tomou-a nos braços e a levou até seu carro, estacionado há algumas quadras dali. Seu trabalho com o mendigo se encerrara, mas havia muito mais guardado para aquela jovem viciada, pois o Doutor estava de volta a ativa, e ele estava mais faminto do que nunca…