– São dois adultos e uma criança, Doutor Carlos. Devem estar nessa situação já tem uns quinze dias segundo a polícia técnica. Também já temos uma investigação preliminar, o homem era um engenheiro, a mulher psicóloga. A criança é filha dos dois. Ainda tem, segundo os vizinhos, uma segunda filha, do primeiro casamento, mas parece que a menina fugiu de casa tem uns seis meses, alguma coisa a ver com droga. Agora, pelo amor de Deus, Doutor Carlos, que animal seria capaz de fazer uma coisa dessas? A criança foi morta a mordidas! – As palavras do investigador Silveira ressoaram na cabeça do delegado Carlos Eduardo como um eco distante.
– Estamos aguardando a perícia terminar seu trabalho, mas o alarme da casa não disparou, aliás, foi desarmado por alguém que sabia a senha, será que foi a filha que fez isso? – continuou Silveira – Delegado, o senhor está me ouvindo?
A cabeça de Cadu latejava, ele não sabia se era o cheiro, a visão dos corpos, as dezenas de policiais falando ao mesmo tempo, a explicação que ele teria que dar para a imprensa local ou se era seu instinto acionando o sinal de alerta de que os pesadelos voltariam. De repente o delegado se sentiu terrivelmente cansado, pensou na esposa e no filho pequeno, mas nem mesmo pensar nos dois tirou o peso dos ombros de Cadu. O delegado suspirou, retirado de seus pensamentos pelo toque no braço do investigador.
– Não acredito que a filha tenha feito isso, pelo menos não sozinha… De qualquer forma vamos partir por essa linha, mande o Almeida e o Pedro Paulo tentar localizar a guria. Ah, e Silveira, nem uma palavra sobre isso, vamos tentar manter isso longe da RBS. – Concluiu Cadu.
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Julia abriu os olhos lentamente, o teto que estava sobre ela era incrivelmente familiar, de um rosa delicado, com estrelas e corações desenhados. A cama, o travesseiro, tudo lhe era familiar… Ela estava em casa, estava limpa, estava com seu pijama favorito, teria sido tudo um pesadelo? Julia sentia-se faminta, poderia comer um boi inteiro, ela levantou-se animada. O crack parecia uma lembrança distante, uma triste lembrança, seu corpo não mais sentia a necessidade daquela pedra maldita, na verdade Julia sentia-se forte e saudável, e sentia-se radiante!
– Pai! Estou em casa! – Gritou a jovem deixando o quarto e descendo as escadas que ela conhecia desde criança, mas que sempre deixava o pai e a madrasta em pânico quando ela descia correndo daquele jeito.
Julia correu para a sala de televisão, sabia que estava de noite, e que o pai certamente estaria em casa. A madrasta costumava chegar depois das 20 horas, já que pegava seu irmão mais novo nas aulas de inglês quase todas as noites, mas o pai certamente estaria ali assistindo o jornal e tomando uma boa dose, como fazia todas as noites. A sala estava escura e de fato a televisão estava ligada, Julia não prestou a atenção no que estava passando, correndo direto para a poltrona que ela sabia que o pai estaria sentado. De repente, como se tivesse levado um soco no estômago, o sorriso deixou os lábios de Julia, a força de suas pernas abandonou seu corpo e a jovem caiu de joelhos diante do homem que estava sentado na poltrona de seu pai. O sorriso lupino presente nos seus pesadelos, Julia sentiu-se tonta, e por um instante quase desmaiou. Sorrindo o Doutor levantou-se e amparou a menina com carinho.
– Boa noite, minha bela adormecida. – Disse alisando-lhe os cabelos. – Você estava tão cansada que eu simplesmente permiti que você dormisse. Aproveitei e fiz compras que você irá adorar… Seu lanche preferido. – Disse, tirando do bolso algumas pedras de crack.
De repente era se como o pesadelo voltasse, Julia olhou para as pedras nas mãos do homem e salivou. Era fome, desejo, loucura, tudo misturado na simples visão daquela droga maldita. Ela tentou agarrar as pedras e sair correndo, exatamente como pensara na primeira vez que o Doutor lhe mostrou as duas notas de cem, e exatamente como ela pensou na primeira vez, ela não conseguiu dar mais do que dois passos antes que ele a agarrasse pelo pescoço. A mão do Doutor se fechou em volta do pescoço como um alicate, Julia sentiu o ar faltar naquele aperto mortal. Dotado de uma força descomunal, o Doutor levantou a garota do chão e arremessou sentada no sofá, fazendo as pedras de crack caírem espalhadas pela sala. Julia mal sentiu o impacto, atirando-se no chão, desesperada para apanhar as pedras da droga maldita.
O Doutor gargalhou vendo o desespero, ela estava quase no ponto… Ele a pegou pelos cabelos e fez com que ela se sentasse na poltrona do pai. Dois bofetões com a mesma força do apertão e Julia voltara a si, ou pelo menos o medo que sentia sobrepujava o desejo pelo crack.
– Mas que menina levada! Tentando me roubar? Você deverá fazer por merecer estes deliciosos doces, minha criança. – Disse o Doutor em um fingido tom de censura, e tomando notas mentais de cada reação da menina.
– Eu faço, faço qualquer coisa! – Disse Julia, chorosa.
– Qualquer coisa pode ser MUITA coisa, criança. – Brincou o Doutor – Vejamos se você é uma boa cadelinha e faz por merecer sua primeira pedra da noite… Venha até aqui, cadelinha… – Chamou o vampiro, chamando-a com o dedo indicador.
Julia ameaçou levantar-se da cadeira, mas com uma velocidade que ia além do seu raciocínio, foi atingida por um novo bofetão que fez com que ela caísse sentada novamente.
– Alguma vez você já viu uma cadela andar em duas patas, Hirma? – Ralhou o Doutor, deixando a ira queimar em seus olhos. Bater naquela garota que sua mente insana associara a sua mãe era como um bálsamo para a raiva – e amor – que ele sentia por sua mãe. Por diversas vezes o pequeno Otto levou bofetões como aquele, e por diversas vezes os cães da Bavária, onde vivia, eram melhor alimentados que o menino. Na época, o Doutor ainda não existia, havia apenas Otto, o garoto órfão de pai e filho da louca Hirma. Uma mulher cuja sanidade simplesmente azedara após a morte do marido. Não que o ódio do Doutor por Hirma fosse diretamente relacionado aos abusos que sofreu, o Doutor simplesmente estava acima disso, na verdade o Doutor odiava Hirma por sua fraqueza, por sucumbir a loucura durante todo o tempo, ao invés de procurar a iluminação que o equilíbrio entre instinto e razão proporcionam. Que grande companheira Hirma teria sido!
O Doutor foi retirado de seus devaneios quando Julia pôs-se primeiro de joelhos, depois de quatro apoios, e então o olhou com olhos suplicantes. O Doutor sorriu em genuína satisfação, Julia começava a demonstrar sinais de que se renderia.
– Tire sua roupa… cães não andam vestidos… – Sugeriu o Doutor, quase que como uma ordem.
Sem dizer uma palavra, Julia começou a tirar o pijama, até que ficasse completamente nua. Apesar dos dezesseis anos, ela já estivera com homens antes, mas ficar nua na frente daquele homem fez com que ela ficasse arrepiada, temendo o que viria a seguir. O Doutor caminhou em direção a cozinha, onde mantinha a família de Julia amordaçada. Sorrindo, como sempre, ele chamou:
– Venha, minha cachorrinha, venha ver os ladrões que estão tentando invadir a nossa casa…
E assim, com a mente subjugada, a jovem caminhou como um cão, em direção a sua insanidade…