Sempre que vou para fazenda, gosto de ficar por um tempo observando as cousas que juntamos ao longo de todos estes anos. Por vezes, juntamos muitos cacos como pedras ou botões, elementos que possuem sentidos apenas para quem vivenciou, mas por outro lado em algumas situações conseguimos guardar muitos tesouros. Por falar em tesouros, hoje eu me dediquei a traduzir mais uma parte de um dos diários do barão, meu tio e metre.
É um material de extrema riqueza cultural, científica e que, além disso, nos mostra como era o mundo nas várias épocas em que ele “viveu”. Grande parte do material foi codificado e escrito num alemão germânico gótico, com muitas palavras específicas aos lugares que ele frequentou e, portanto de difícil tradução. Sebastian, quando não está ocupado, se diverte com esse material, inclusive competimos às vezes no sentido de quem consegue traduzir e digitalizar mais rapidamente tais linhas ricas e tortuosas.
Sem mais delongas, contar-vos-ei hoje uma passagem no ano de 1819, quando Georg esteve por terras brasileiras em busca das riquezas do novo mundo. Bem na verdade ele queria desbravar a América do Sul em prol de suas pesquisas naturalistas e biológicas. Fato que lhe rendeu algumas menções honrosas, mas também muitos problemas como este a seguir.
01/02/1819
De manhã, tudo estava preparado para a partida e com o final da semana de chuva torrencial, que torturou-nos por duas longas semanas, seria oportuno cavalgarmos ao menos 7 léguas neste dia. Deviam ser 8h30 quando o capitão-mor, senhor Joaquim, bateu a minha porta e comunicou uma notícia inesperada e chocante sobre a morte de meu escravo Pedro.
Pedro era um Kaoma com idade beirando os 18 e poucos. Comprei-o quando tinha 8 anos. Ensinei-lhe diversas técnicas de coleta de material para minhas pesquisas, inclusive era meu melhor ajudante. Tinha sempre muito apreço e jeitoso no trato com tudo que fazia. Prometi-o inclusive ao voltar de nossas andanças, que compraria uma mulher e quem sabe poderia se tornar meu Ghoul como homem livre.
Avisei Martines e parti inconsolado para o centro da vila. Lá estava o esguio, seu corpo gelado não transmitia nenhum sinal vital e a poça se sangue indicava sua morte prematura. Soube que havia conversado timidamente com alguns senhores antes do infortúnio. Porém depois a última conversa havia sido com dois escravos pertencentes ao senhor Jefferson Antunes de Azevedo e Noronha.
Para mim e para a expedição fora uma grande perda. Pedro era um escravo de valores, executava com habilidade, prazer e boa vontade seus ofícios. Sua diligência permitia minha concentração no material científico e com as pesquisas. Só o condutor deste mundo para saber por ele foi tirado de nossa convivência tão precoce.
Com isso fiquei impedido de recompensá-lo… Que Deus esteja contigo, querido Pedro!
02/02/1819
Noutra noite dirigi-me novamente ao centro do vilarejo. O Juiz, o escrivão e o cirurgião fizeram-lhe um “visum repertum”, onde estava escrito que o pequeno corte (que aliás havia passado desapercebido por mim noutra noite), fora a causada morte de Pedro. Por ali ele perdera todo o seu sangue em menos de 1 minuto.
Resolvi então investigar, logo depois soube que Pedro esteve na rua com as vendedoras, depois chegaram dois negros, depois mais dois. Sendo um portador de uma faca e o quarto uma clava. O tal da faca era marido de uma negra chamada Joaquina, no qual Pedro havia conversado. Relatei tudo à polícia e aguardarei para ver o que será feito.
Infelizmente, o Brasil é hoje uma terra de ninguém onde nem direito de propriedade nem justiça são protegidos ou funcionam. A administração é caótica e todos os funcionários públicos que rodeiam o imperador, transpiram qualquer forma de organização. Cabe aqui uma dica aos meus conterrâneos Europeus:
Fiquem onde estão e bebam o seu sangue que lhe és tido por merecimento, ele terá melhor sabor do que este produzido com risco eminente.
Voltando a falar de meu Pedro, esta manha ele foi levado a igreja onde providenciar-lhe-ei um enterro digno. Não era o que certamente eu lhe faria se estive em minhas propriedade, porém ser-lhe-á mais digno que sua morte, o qual terei eu mesmo de fazer justiça.