A garoa caía leve, deslizando pelo ar como pétalas entregues ao vento. A lua, tímida, se escondia entre as nuvens, quase imperceptível aos olhos humanos. No refúgio, Pepe estava largada no sofá, distraída, enquanto Audny folheava os manuscritos e anotações trazidos da fazenda. Mas eu… eu estava inquieto. A noite parecia exigir movimento, interação.
“Algum esquema hoje no pub?”, escrevi para Franz.
O silêncio da tela não me surpreendeu. Ele poderia estar em qualquer lugar, fazendo qualquer coisa que um imortal desejasse. Sem esperar resposta, peguei um dos carros – um híbrido – e segui para lá. O trânsito estava tranquilo após as 21h, mas ao me aproximar do pub, uma onda de presenças me atingiu. Majoritariamente humanos, sim, mas também sobrenaturais. Entre eles, um lobisomem, talvez uma bruxa… e uma energia fraca, oscilante. Um vampiro jovem.
Estacionei na vaga habitual. O carro de Franz não estava ali. Nada preocupante – ele vinha e ia conforme queria. A fila para entrar estava longa. No meio dela, identifiquei a lupina e um possível feitiço na aura de alguém. A energia do vampiro novato também reverberava ali, instável.
Passei pelos seguranças com um aceno rápido. Sabiam quem eu era. Desci para a área administrativa, onde a gerente e o chefe de segurança monitoravam as câmeras. Atrás daquela sala, uma segunda porta protegida por senha levava ao nosso espaço reservado: sofá amplo, uma mesa cercada por cadeiras, uma geladeira abastecida com bebidas e bolsas de sangue fresco, trocadas a cada três noites.
Sentei por ali, consumindo uma dose, rolando as redes sociais. A banda começou pouco antes das 22h – uma boa oportunidade para interações. Ainda nada de Franz. Não que eu estivesse preocupado. Era apenas a inquietação geminiana. Fui ao lavabo, gargarejei flúor e finalmente me joguei na pista.
— Senhor Ferdinand, sou sua fã! — A garçonete surgiu, prendendo-se ao meu braço. — Sempre acompanho suas postagens no Wampir! Estava comentando com uma amiga sobre como você e o senhor Franz interpretam bem os vampiros!
Essas eram as ocasiões em que os dons mentais de Franz seriam úteis, mas eu sabia lidar. Soltei uma risada e correspondi:
— Que bacana! Depois me chama lá e me conta quais histórias você curtiu mais. — Aproveitei a deixa. — Viu meu irmão por aí?
Ela apenas balançou a cabeça. O som aumentava e a multidão se movia ao ritmo das melodias. A lupina se divertia como qualquer outro. Eu mergulhei nos riffs, absorvendo a vibração da noite. Era disso que eu precisava.
O iPhone vibrou.
“Tô indo pro pub, tais onde, maninho?” – Franz finalmente deu sinal de vida.
Quando ele chegou, subimos para o terraço. Em meio a tragadas no vape de melancia, ele falou sobre uma vampira que havia conhecido recentemente. “Coisa boa”, pensei. O papo fluía até que senti aquilo.
A energia que sempre vinha.
A voz de Franz se tornou distante, as músicas se dissolvendo no fundo. A névoa surgiu, sinuosa, e eu… eu sabia. Estava sendo puxado para o Umbral.
Era inevitável.
Meu corpo não resistia. Atravessava.
E então, 1945.
O cheiro de maresia. O som das ondas. Leblon. Sentado numa cadeira de calçada, observava o velho bar Veloso – um mercadinho na época, ponto de encontro de quem apreciava música e cerveja gelada.
A princípio, não me sentia dentro do meu corpo. Flutuava em uma estranha consciência, mas logo me reconheci. Era eu. Vestido com roupas da época. Estranho e fascinante.
Alfredo, o ghoul de Eleonor, estava ao meu lado. Não Franz.
Ele resmungava sobre os trabalhos, jogando para dentro doses generosas de cachaça – “oncinha”, como chamava. A cena era familiar. Eu lembrava daquela noite. A noite anterior ao dia em que conheci Aidê.
Mas antes que pudesse interagir, tudo se esvaiu. Alfredo, o barulho, o ambiente. A névoa retornou.
Pisquei e lá estava Franz, me encarando.
O celular vibrou.
A sobrinha de Aidê.
Ela havia morrido.
Sinto pela perda,
Ultimamente tenho perdido mts, Seth que é o ser sobrenatural que me acompanha disse que seria assim…
Eu não acreditei até tudo começar a se desenrolar diante dos meus olhos.
Olhos ainda humanos.
Sim, há muito o que ser aprendido. Principalemtne sobre amizades com quem fica pouco tempo nesse plano. Nào sào apenas os olhos, mas uma parte da alma que se vai com eles, quem dirá a humanidade…
Nunca sei bem o que dizer nessas situações…
Meus pêsames não traduz o que sinto, posso apenas dizer que, como todo mundo, sei o que é perder alguém de estima, pessoas próximas e queridas sempre irão encontrar lugar em nossas memórias, nunca nos deixam realmente.
De qqr forma, espero que vc esteja bem…
Já deve estar calejado por perdas significativas.
Sempre complicado Tatiane… inclusive falei um pouco mais da Aidê no conto que publiquei essa semana que passou. Tá aí uma pessoa que eu deveria ter passado mais tempo junto 😔